Romances protagonizados por casais disfuncionais não chegam a ser novidade. Em “Até os Ossos” (Bones and All), os protagonistas em questão são Maren Yearly (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet). Ela, uma garota com dificuldades de socialização, que foi abandonada, ainda bebê, pela mãe; ele, um rapaz que deixou a mãe e a irmã caçula para trás, para viver a ermo na estrada, após um trágico acontecimento em família.
Nada que já não tenhamos visto de algum modo em outras produções do gênero, a não ser por um pequeno detalhe: Maren e Lee são canibais. E essa é a premissa que o diretor Luca Guadagnino leva aos cinemas, na adaptação da obra literária homônima de Camille DeAngelis.
A trama se passa em diversas cidades americanas, nos idos de 1984 e mostra a evolução (se é que se pode chamar assim) da situação peculiar dos personagens. Após cometer mais um ato de violência contra uma de suas colegas de classe, Maren se vê obrigada a mudar de residência às pressas (fato já vivido anteriormente, devido a motivos semelhantes).
Cansado de lutar contra o inevitável, seu pai (André Holland) a abandona à própria sorte, com apenas uma fita cassete, na qual está gravada toda a história da adolescente, incluindo detalhes que levaram até aquele ponto. O relato bastante sincero coloca o espectador dentro da rotina da jovem, que demonstrou ter algum distúrbio desde muito nova.
Decidida a encontrar a mãe, após tantos anos, Maren parte em uma busca ingrata e com poucas chances de sucesso. É quando seu caminho se cruza com outros que, assim como ela, também sentem compulsão por carne humana – o que significa que cenas bastante explícitas (mas totalmente coerentes com o roteiro de David Kajganich) invadirão as telas durante parte dos 131 minutos de duração da obra.
Se por um lado Sully (Mark Rylance) mostra-se uma espécie de “mentor do canibalismo” (não estou certa que essa expressão faz algum sentido), Lee assume o papel de primeiro amor. Um é assustador e consegue ser uma grande ameaça, mesmo com a manutenção de um tom de voz que beira a serenidade na maior quase sempre. O outro é misterioso e conquistador e talvez seja o mais próximo que a protagonista já chegou (e / ou conseguirá chegar) de alguém.
Com uma trilha sonora excepcional e uma proposta, no mínimo, diferente, “Até os Ossos” ganha a atenção do público desde o início. Embora com o passar do tempo, torne-se difícil saber como se sentir frente às ações do casal principal, que alterna sequências de amor à brutalidade de assassinatos (e posteriores refeições de qualidade duvidosa).
E essa talvez seja a maior virtude do longa, a capacidade de incomodar e instigar simultaneamente. Queremos respostas sobre o passado dos jovens, mas existe uma linha tênue que insiste em nos lembrar de que nem sempre as descobertas serão agradáveis.
Em tradução literal, o título do filme / livro é “Ossos e Tudo” – bem explicado em dado momento da narrativa. Talvez seja o único jeito de consumir esse conteúdo, de forma completa e radical. Ainda que se corra o risco de, assim como após certos banquetes, não se conseguir digerir tão facilmente.
por Angela Debellis
*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Warner Bros. Pictures.