Crítica: “Coringa: Delírio a Dois”

Há quinze anos, Lady Gaga (quem sabe em um momento premonitório) escrevia: “Eu quero seu horror, eu quero seu design… Porque você é um criminoso enquanto for meu… Eu quero seu amor”. O trecho de “Bad Romance”, um dos maiores êxitos da cantora / compositora / atriz talvez seja o mais próximo que dá para chegar de um resumo do relacionamento que move os protagonistas de “Coringa: Delírio a Dois” (Joker: Folie à Deux).

Dirigido por Todd Phillips (também responsável pelo roteiro junto a Scott Silver), o filme chega às telonas cinco anos após “Coringa” – um dos mais admiráveis (e premiados) títulos de 2019 – para mostrar os acontecimentos que sucederam a prisão de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, que segue irretocável no papel).

A condenação do homicida / comediante fracassado parece óbvia, mas, até o julgamento, existe um caminho longo – como costuma acontecer em diversos processos de justiça – o que leva o personagem a estar encarcerado no Hospital Estadual Arkham, enquanto aguarda o veredito. O local deprimente e com ares de abandono não só o priva de sua liberdade, mas também de qualquer traço de dignidade física ou emocional.

Este é o cenário em que veremos as cenas mais explícitas da produção – e que podem ser impeditivas para algumas pessoas. O tratamento dispensado aos internos facilmente leva o público a se questionar sobre o frágil limite que muitas vezes difere o lícito do justo.

Ainda mais cadavérico e ensimesmado, Arthur surge em cena – depois de uma inusitada / ótima sequência de abertura. Talvez por não ter nenhum tópico relevante a dizer, ele demora um tempo considerável até falar as primeiras palavras e o espectador o segue em silêncio, através de corredores insalubres e claustrofóbicos.

Se nada parece mudar na rotina doentia do local, o quadro ganha outros contornos com a aparição de Lee Quinzel (Lady Gaga, empenhada para entregar uma boa atuação), interna considerada de menor periculosidade, que não esconde a simpatia por Arthur, fazendo questão de estar junto a ele em todos os momentos possíveis.

Tais oportunidades de aproximação são representadas através de sequências musicais, cuja duração vai de uma simples estrofe a canções completas, interpretadas por Phoenix e Gaga. Elas podem até desagradar aqueles que não gostam do gênero, mas fazem total sentido em sua função de simbolizar o que se passa nas mentes dos protagonistas, em um delírio compartilhado – como ocorre na síndrome psiquiátrica do título original, Folie à Deux.

Por falar em música, este é um dos elementos mais notáveis da produção. Além de versões de clássicos – como “That’s Entertaiment” e “What the world needs now is love” – a trilha sonora conta com o retorno da compositora / vencedora do Oscar, Hildur Guðnadóttir. O resultado – já premiado na edição mais recente do Festival de Veneza, é brilhante.

Grades prisionais se intercalam à sisudez de um Tribunal, onde o destino de Arthur será escrito por um júri popular e por Harvey Dent (Harry Lawtey), jovem promotor de atitudes polidas e muito seguro de si. E este é o aceno mais nítido aos quadrinhos da DC Comics, com o roteiro mantendo a posição de ser algo à parte do mundo apresentado nas páginas de revistas.

Detalhes esporádicos ajudam a traçar rotas surpreendentes e acrescentam conteúdo aos personagens. Há muito mais a se ver / descobrir, além de camadas “superficiais” mostradas nos materiais de divulgação. A complexidade da mente humana é mesmo incrível.

Por considerar “Coringa” um filme completo e eficiente na medida, eu não sabia como me sentir diante do anúncio de “Coringa: Delírio a Dois”. Mas, a verdade é que, assim que as luzes da sala se apagaram para dar palco à narrativa inédita, eu já estava totalmente envolvida pela proposta.

A grande cartada do longa é também seu Calcanhar de Aquiles: a possibilidade de abertura para discussões (válidas ou não) sobre o senso de moralidade que torna possível aos seres humanos viverem em sociedade. Arthur é um assassino confesso. Mas, até que ponto suas vítimas (e condutas comprovadamente questionáveis) são merecedoras de empatia? Até que ponto os demais moradores de Gotham se viram lesados por suas mortes?

Nas HQ’s tudo se torna “mais fácil” de acompanhar (mas não de digerir): com a falta de uma história canônica de origem, o Príncipe Palhaço do Crime, antagonista máximo do Batman, é alguém alimentado por uma maldade inata, aquela que não tem (nem procura por) explicação para existir. Um vilão sem nenhuma faceta positiva oculta a ser estudada, a não ser a que ostenta sem culpa: a da crueldade absoluta e sem distinção.

Em tempos nos quais existe uma assustadora necessidade de identificação, para validar ações e sentimentos, é triste ouvir que parte do público não se sentiu tão impactada com a trama. Talvez porque não ser testemunha de nenhum acontecimento semelhante, ou porque nos acostumemos com a dor alheia, contanto que esta não respingue nenhuma gota de sofrimento em nossa armadura.

No fim, é confortável estarmos do lado de fora, na posição de juízes que creem ter a solução para as mazelas dos outros, mas que não enxergam a fragilidade do próprio comportamento.  E, após tantos anos de sua citação, seguem tão verdadeiras – e pesarosas – as palavras do dramaturgo e poeta William Shakespeare: “Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente”.

Ícone dos quadrinhos, Coringa (em mais uma versão bem específica) volta a escrever seu nome de maneira definitiva na história do cinema. Isso é entretenimento.

por Angela Debellis

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Warner Bros. Pictures.

Filed in: Cinema

You might like:

Crítica: “Coringa: Delírio a Dois” Crítica: “Coringa: Delírio a Dois”
Escape Room Club inaugura novo desafio com a sala Rainha de Copas Escape Room Club inaugura novo desafio com a sala Rainha de Copas
Panini promove evento de lançamento da HQ “Coringa – O Mundo” em São Paulo Panini promove evento de lançamento da HQ “Coringa – O Mundo” em São Paulo
Mostra Internacional de Cinema apresenta com exclusividade “O Brutalista” Mostra Internacional de Cinema apresenta com exclusividade “O Brutalista”
© AToupeira. All rights reserved. XHTML / CSS Valid.
Proudly designed by Theme Junkie.