Crítica: “A Substância”

A busca pela perfeição é um tema amplamente debatido nas mais diversas esferas. Na Mitologia Grega, o Mito de Narciso é um de seus maiores expoentes; na literatura, o clássico de 1890, “O Retrato de Dorian Gray”, de autoria do irlandês Oscar Wilde, segue mais atual do que nunca; na vida real, os incontáveis casos de anônimos e “celebridades” que se submetem a procedimentos cada vez mais invasivos, na esperança de manter e/ou recuperar o frescor da juventude, povoam canais de televisão e redes sociais.

Histórias ficcionais e verídicas, passadas em tempos díspares, que, em comum – além do tema central da tentativa de obtenção de uma beleza inatingível / inesgotável – têm o final, nem sempre vantajoso e uma lição de moral que perde o sentido a cada nova projeção de intervenções estéticas que chegam às mãos de quem não aceita a passagem inexorável do tempo.

Toda essa temática avança a níveis colossais em “A Substância” (The Substance) , longa escrito e dirigido magistralmente por Coralie Fargeat e que leva às telas – com extrema competência – um dos subgêneros mais polêmicos do terror: o body horror (horror corporal).

A trama nos apresenta Elisabeth Sparkle (Demi Moore), ex-atriz laureada em inúmeras premiações – com direito à própria estrela na Calçada da Fama -, que vê sua longeva carreira definhar com o passar dos anos, não importando o quanto se empenhe para manter-se em evidência.

À frente de um programa de exercícios (gênero que faz sucesso nos estados Unidos há várias décadas), a protagonista parece confortável consigo mesma. Tal quadro muda rapidamente, ao descobrir que seu chefe, Harvey (Dennis Quaid) planeja demiti-la – após anos de dedicação à emissora televisiva – por achar que ela está “velha” (o que seria, segundo ele, um problema para atrair patrocínio e espectadores).

O desligamento acaba por minar a autoconfiança de Elisabeth e, essa degradação é quase palpável, através não só do visual, mas da interpretação irretocável de Demi Moore. Vê-la entrar em combate contra sua imagem refletida em um espelho, como se este fosse seu pior e mais sincero inimigo, é doloroso demais. Em suas palavras: “Fica cada vez mais difícil lembrar que você merece existir, que você ainda importa”.

Fugindo ao máximo da área de spoiler, uma vez que assistir ao filme sem saber muito a respeito da narrativa amplifica a experiência, é possível dizer que, devido à desilusão de perceber que sua carreira está (injusta e repentinamente) chegando ao fim, Elisabeth decide dar uma chance a tal substância do título, que promete gerar uma versão dela mesma – só que melhor.

E isso é feito no sentido literal, com a introdução daquela que seria essa versão superior – e não apenas um trabalho brutal de rejuvenescimento do próprio corpo. Essa espécie de “clone” nomeada como Sue (Margaret Qualley) terá que dividir os dias ativos com sua “matrix”. O que significa que, embora sejam a mesma pessoa – fato lembrado de tempos em tempos a ambas – as duas não poderão “viver” ao mesmo tempo.

A regra, aparentemente simples, mostra-se bem mais complexa quando colocada à prova. Até o ponto em que não existe mais nenhuma chance de colaboração e as duas partes buscarão, pelo que lhes for mais conveniente – não importando que isso traga consequências irremediáveis que assomam-se em uma avalanche de más decisões.

Uma produção de 140 minutos precisa ser satisfatória para prender a atenção do público do começo ao fim, mas assistir a “A Substância” é absolutamente inebriante. Quanto mais elementos surgem em tela, mais somos conduzidos a um caminho em que a vaidade desmedida torna-se um veneno poderoso.

E tudo isso é explicitado através de inúmeros detalhes que vão de cores e escolhas de figurinos à evolução de cenários; de duras citações verbais a odiosos exemplos visuais. A jornada de Elisabeth torna-se de todos aqueles que sofrem com a crueldade de quem esquece que também envelhecerá (realidade que pode ser contornada, mas que acaba vencendo em algum momento).

Ainda que o tema seja bastante sensível, o longa – com viés dramático – também conta com momentos cômicos (mesmo que parte dos risos provocados carreguem uma parcela de nervoso). Mas, é no horror corporal que ele se destaca, com resoluções tão acertadas quanto sagazes. Sair da sala sem ter sentido nenhum tipo de incômodo, parece-me improvável.

Há tanto a se refletir sobre “A Substância”, mas um detalhe resume sua essência: o sobrenome de Elisabeth. “Sparkle”, em português, significa “Brilhar”; Sue não tem nenhum sobrenome. Talvez isso queira dizer muito sobre as coisas que realmente importam, apesar de tudo.

por Angela Debellis

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Imagem Filmes e pela MUBI.

Filed in: Cinema

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