Crítica: “Ela Disse”

Desde sempre, o mundo do entretenimento em geral (mas, em especial o do cinema) se reveste de uma aura edílica, através da qual o público enxerga apenas o que se quer que seja visto. Mas, graças à velocidade com que tudo acontece nos dias de hoje, muito mais é ansiado pelos consumidores e revelado por profissionais da indústria (o que, por consequência, também implica na participação de pessoas que não têm essa formação, mas alcançaram fama em redes sociais).

A boa e velha máxima do “Pão e Circo” nunca esteve tão em alta. 2022 foi o ano dos retornos pós a Pandemia de Covid-19 que assolou o mundo. Competições esportivas e eventos temáticos dos mais diversos retomando suas versões presenciais, bares e restaurantes funcionando sem restrição, viagens adiadas sendo feitas normalmente. E a necessidade de se entorpecer com ilusões volta a ser sanada por boa parte das pessoas.

Usando uma expressão bem atual, “E fora dos stories?” – ou no caso de “Ela Disse” (She Said), “E por trás das câmeras?”. Essa é a realidade mostrada no filme dirigido por Maria Schrader, que tem como foco a reportagem do Jornal New York Times que deu início às investigações que levariam ao Movimento “Me Too” e à posterior prisão / condenação do produtor de Hollywood, Harvey Weinstein (Mike Houston).

Se eu precisasse resumir o longa em uma frase, entre tantas impactantes ditas em 129 minutos de duração, escolheria uma da atriz Rose McGowan: “Faz muito mal gritar e ninguém ouvir”. Tal verdade explanada de maneira tão sincera e sentida encontra apoio no trabalho das repórteres investigativas Megan Towohey (Carey Mulligan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan), que encaram a missão de conseguir declarações oficiais e documentos / provas físicas que possam incriminar Harvey e fazê-lo pagar por seus crimes.

Essa busca compreenderá meses de contatos mal sucedidos e solicitações negadas, em parte devido a restrições judiciais impostas em acordos realizados com as vítimas (sempre visando à manutenção da carreira do veterano produtor), em parte devido ao medo e vergonha de funcionárias e atrizes que foram submetidas a vários tipos de humilhação: de assédio moral a toques não permitidos, de ameaças de demissão sem justa causa, a estupros.

Há uma mescla de sensações a cada nova cena: por um lado, é incrível ver o empenho de Megan e Jodi – junto à editora Rebecca Corbett (Patricia Clarkson) – assim como é satisfatório perceber que o jornalismo, quando bem aplicado, segue sendo uma poderosa ferramenta. Por outro, é doloroso acompanhar os relatos de tantas mulheres que foram violadas de algum jeito por um homem que julgava-se superior a elas, graças ao “poder” que lhe foi concedido pela indústria cinematográfica.

Entre tantos momentos pungentes, uma sequência me marcou de modo que eu não imaginava: a que mostra imensos corredores vazios de um luxuoso hotel – palco de vários delitos cometidos por Harvey – enquanto ouvimos o áudio de uma conversa gravada às escondidas, cujo teor é de revirar o estômago de qualquer pessoa que tenha o mínimo de senso de moralidade e respeito para com o próximo.

Assim como também é emocionante a participação de Ashley Judd (que interpreta a si mesma), cujo testemunho foi crucial para dar credibilidade à reportagem e encorajar outras mulheres a se pronunciarem, chegando ao inaceitável número de 82 vítimas assediadas desde a década de 1990 até 2017 (ano em houve a divulgação da história – que renderia um Prêmio Plitzer às jornalistas – na primeira página do jornal americano).

Baseado em fatos reais – na matéria do New York Times e no livro homônimo de Megan Twoney e Jodi Kantor -, o roteiro de Rebecca Lenkiewicz não se furta de colocar em tela o que há de pior no ser humano (se é que algumas pessoas podem ser chamadas assim), através do conteúdo de tristes depoimentos. Mas também mostra o quão importante é manter-se do lado correto, aquele de quem tem a capacidade de reconhecer a dor dos outros e lutar para que esta seja pelo menos amainada, com a justiça sendo feita.

Provavelmente marcando presença na próxima temporada de premiações, “Ela Disse” é brilhante, necessário e corajoso, e por isso mesmo, merece ser conferido nos cinemas.

por Angela Debellis

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Universal Pictures.

Filed in: Cinema

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