Um romance literário (“Écout”, de Boris Razon, lançado em 2018) se converte em um libreto de ópera (adaptado a partir do material original, por Jacques Audiard) e ganha uma versão cinematográfica agraciada com o maior número de indicações ao Oscar na atual temporada de premiações – treze, no total.
Esse é o caminho percorrido por “Emília Pérez” (Emília Pérez), longa francês que chega às telas com uma bagagem tão surpreendente quanto mista: da aclamação na mais recente edição do Festival de Cannes (quando foi aplaudido por nove minutos e ganhou dois prêmios) e êxito em diversos festivais, ao centro de inúmeras polêmicas de bastidores trazidas à frente dos holofotes, tudo que envolve a produção parece uma grande hipérbole.
Há muito tempo, a expressão “Fale mal, mas fale de mim” deixou de fazer sentido (se é que teve algum dia). E, na atualidade, ter um engajamento (sempre ele) negativo no mundo virtual é praticamente assinar a própria carta de fracasso, mesmo que haja algo – que acaba sendo deixado de lado – a se exaltar no meio de todo esse embrólio. É o que acontece com o drama/comédia/musical/thriller.
Falando sobre o que se vê em tela, a sensação é a de que o roteiro – de Léa Mysius, Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi e do próprio diretor, Jacques Audiard – tentou dar conta de mais assuntos do que seria capaz. Isso transforma o filme em algo com evidente potencial, mas que não soube lidar com tantos conteúdos diferentes, de maneira simultânea.
Na trama passada primordialmente no México, conhecemos Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón, primeira mulher trans a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz), um dos maiores líderes dos quartéis de drogas de país. Casado com Jessi (Selena Gomez) – com quem tem dois filhos pequenos – o narcotraficante não está satisfeito com a vida que leva, apesar de todos os benefícios materiais que ostenta.
Do outro lado da história, somos apresentados à Rita Mora Castro (Zoe Saldaña, indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante), advogada em conflito com seus princípios, que também está infeliz com as decisões profissionais que precisa tomar frente ao escritório de moralidade duvidosa onde trabalha.
Seus caminhos vão se cruzar quando Manitas – de maneira pouco ortodoxa – fizer uma proposta à Rita, para que ela seja a ponte que o separa do que seria seu grande sonho e meta de vida: realizar uma cirurgia de redesignação sexual, para tornar-se, fisicamente, o que tem como sua verdadeira identidade: uma mulher.
O processo implica no desaparecimento definitivo do criminoso, dado como morto, inclusive à sua família. Com isso feito, o surgimento de Emília Pérez (Karla Sofia Gascón) é uma questão de tempo – além de muitas intervenções cirúrgicas e a continuidade de um processo de terapia hormonal já iniciado anteriormente pelo traficante.
Após uma passagem de tempo de quatro anos, a dupla volta a se encontrar e uma nova missão é dada: desempenhando o papel de uma prima distante, Emília deseja reaproximar-se de seus filhos e, para isso, contará com a ajuda de Rita, mais uma vez.
A narrativa poderia ser vista até como “simples” (pelo menos em partes), se fosse apenas isso. Mas, tudo é colocado em um grande caldeirão, com cada vez mais ingredientes, dentre os quais, algumas decisões criativas não aparentam fazer o sentido que, supostamente, lhes foi imaginado.
Como o fato de falar de um assunto real e tão grave quanto a atuação dos quartéis mexicanos (que já levou ao desaparecimento e morte de milhares de pessoas) em uma obra que se classifica – entre outros gêneros – como musical – mesmo que haja a justificativa de ser uma “fantasia”. No geral, ainda que tenha tanto destaque em momentos cruciais, a trilha de Camille e Clément Ducol, seja em letras ou melodia, mostra-se equivocada e parece inoportuna na maioria das sequências das quais faz parte.
Tal qual a mudança drástica de comportamento de Emilia – que após a transição torna-se, de imediato, uma mulher generosa e gentil, ao contrário da conduta violenta e homicida que apresentou em toda sua vida até ali – e também pode ser vista como contestável, mesmo que haja a (sempre válida) intenção de se pregar a óbvia importância do perdão e da redenção.
Bem como há nítidas questões visuais falhas que, mesmo quem não tem uma régua de exigência muita elevada, deverá perceber sem esforço. O que faz com que certas indicações a prêmios técnicos sejam ainda mais questionadas.
Enfim, “Emília Pérez” é um daqueles casos inexplicáveis de produções que alcançam uma visibilidade bem maior do que seria o convencional, atraindo um público que não se exime de dar sua opinião (positiva ou não) e que mantém o filme do olho de um furacão por tanto tempo quanto julgar necessário para (tentar) impor seus pontos de vista.
por Angela Debellis
*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Paris Filmes.