Quem tem (ou já teve) privilégio de conviver com algum animal sabe o quão fascinante é a comunicação que desenvolvemos com eles. Um movimento de orelhas, um olhar, uma mudança de postura, uma leve alteração em seu tom vocal. Tudo converge para o entendimento do que se passa ao redor e no coração dessas criaturas tão especiais.
A partir dessa capacidade de leitura que o ser humano é capaz de fazer (embora nem sempre tenha dignidade ou empatia para isso) que assistir a “Flow” (Flow) torna-se muito maior do que uma simples ida ao cinema.
Representante da Letônia no Oscar – prêmio ao qual concorre em duas categorias – e Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Animação, a obra se arrisca ao levar para as telas uma história sem nenhum diálogo, protagonizada por animais que mantêm apenas suas características naturais.
Todavia, o que poderia ser uma decisão equivocada – visto o imenso sucesso alcançado por outras produções do gênero que “humanizam” seus personagens animais e os transformam em versões que cantam, falam e agem como qualquer pessoa – torna-se seu maior trunfo.
Escrita por Rot Matusskaza, Ron Dyens e Gintz Zilbalodis – este também à frente de várias funções além da direção -, a trama se passa em um mundo que, supostamente, seria o nosso, mas em alguma época pós-apocalíptica.
É fácil perceber tal fato, uma vez que não há nenhum humano em cena, apesar do cenário mostrar edificações como a casa na qual o protagonista dorme, além de prédios, pontes e esculturas que vão de pequenas obras em um jardim, a peças do tamanho de montanhas.
Não há explicação para o que aconteceu nesse lugar, contudo é nítida sua gravidade. A água (elemento vital para nossa sobrevivência) assume contornos de vilã ao provocar uma inundação que, de tempos em tempos, faz o nível já insustentável, voltar a subir. Além do grupo principal, poucas criaturas são vistas, como se a devastação da natureza – em todos os sentidos – fosse inegável.
A proposta é levar o espectador a seguir o fluxo (seja das águas ou da vida), a partir da perspectiva de cinco animais distintos: um Gato Preto, uma Capivara, um Cachorro, um Lêmure e uma Ave Secretário. Tais espécies com tão pouco (para não dizer nada) em comum, terão que aprender a conviver em harmonia – tanto quanto isso for possível – dentro de uma embarcação abandonada que as leva por um caminho desconhecido.
O diminuto espaço que oferece alguma segurança frente à profundidade das águas será o palco para suas óbvias diferenças virem à tona. Cada um reagirá, à sua maneira, ao fato de que suas vidas parecem estar em perigo constante e que, se não há nada a se fazer a respeito, isso não deve ser motivo para interromper as tentativas.
Há um quê de brilhante na simplicidade de “Flow”. Em um período no qual é exigida uma complexidade cada vez maior em narrativas (mesmo que nem sempre isso funcione a contento), é lindo vivenciar o quanto um filme pode ter muito a dizer – sem que para isso faça uso de uma palavra sequer.
Como também é sublime a sensação de se envolver com essa ideia desde o início. A naturalidade com que nos pegamos torcendo pelo êxito dos personagens, vibrando a cada mínima conquista, chorando quando fatos inevitáveis nos lembram do quão frágeis somos diante do todo.
Seria injusto destacar algum ponto em especial, quando todo o conjunto da obra é primoroso. Ainda assim, cabe a menção à linda trilha sonora de Gintz Zilbalodis e Richards Zalupe, que acompanha a jornada dos animais e a precisão com que se criaram determinadas sequências que provocam não só encantamento visual, mas reflexões inesperadas.
Com 85 minutos de duração (lembrando que há uma – curta, porém importante – cena adicional após o término dos créditos), “Flow” consegue marcar seu nome para sempre na história do cinema, ao dar aos espectadores a possibilidade de sentir um improvável misto de emoções. Exatamente o que faz a sétima arte tão única.
Imperdível.
Obs: Aproveitando a merecida visibilidade do Gato Preto, pense em abrir seu coração para um amiguinho felino. Na @adoteumgatinho tem vários queridos esperando por um lar cheio de amor para chamar de seu.
por Angela Debellis
*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Mares Filmes e Alpha Filmes.