Crítica: “O Sequestro do Papa”

O chamado “ser humano” tem aspectos muito elevados e, também, outros, detestáveis, monstruosos. Falando destes últimos, talvez até contraditória, paradoxalmente, às vezes há união ou proximidade entre o sinistro e a religião – ou, se se preferir, instituições religiosas.

O conhecido italiano Marco Bellocchio, diretor deste, seu 32º título, aborda esse vínculo mais uma vez em sua filmografia (antes o tinha feito em “A Hora da Religião” [2002]). Em outras palavras, retrata, novamente, a relação entre religião e poder, quando esta passa a ter características de sociopatia, assim como mostra àqueles que possuem este transtorno de personalidade (os considerados sociopatas narcisistas, representado, neste caso, pela figura do Papa).

“O Sequestro do Papa” (Rapito) relata o sequestro realizado em Bolonha, Itália, pela Igreja Católica, no dia 24 de junho de 1858, do menino Edgardo, sexto filho da família Mortara. Eles eram judeus praticantes e ensinavam seus filhos a serem dessa religião. Nesse momento ele tinha seis anos de idade.

O Papa, chefe supremo católico, era Pio IX que, simultaneamente, era o Rei do Estado Pontifício. Na época, dentro da Igreja Católica, tinha enorme importância e poder o Tribunal do Santo Ofício (mais conhecido como “A Inquisição”). Esta instituição se ocupava de manter os princípios e regras, ou seja, combatia as denominadas “heresias”, desvios de crenças religiosas consideradas certas.

Os judeus eram definidos como heréticos (“pérfidos”, diz um personagem) e, portanto, não bem vistos por estas instâncias. Este caso em particular está registrado pela história e aqui transformado primeiro em livro e depois em roteiro cinematográfico (corredigido pelo próprio Bellocchio).

Sabe-se que uma realização que se baseia em “fatos reais” pouco provavelmente vai ser fiel ao acontecido, e será uma versão com grau de proximidade difícil de ser verificado. Além disso, o caráter dramático é acentuado.

Na trama do filme, acontece que a família Mortara tinha uma criada que, aparentemente, tinha batizado o bebê Edgardo segundo ritual católico, ainda sem consentimento nem conhecimento dos pais. Em casos assim, e sem necessidade de testemunha alguma, a igreja considerava que essa pessoa devia ser educada segundo as crenças católicas.

Sabendo disso, o Tribunal dá a ordem de apropriar-se dele, afastando-o dos pais. O ato da separação vai ser doloroso, e novo local e pessoas lhe resultarão física e psicologicamente estranhos. Começa assim uma formação da criança que pode ser entendida como reeducação para que siga a fé que se considera certa ou, pelo contrário, como uma lavagem cerebral que manipula mentalmente a pessoa.

Inicia-se uma longa e tortuosa disputa entre a igreja e a família. As mais altas autoridades religiosas estão cientes e envolvidas nessa briga. Os grupos judeus também, procurando recuperar o menino. As reviravoltas que acontecem criam um clima angustiante, sendo uma obra que vai desde esse sentimento até chegar a provocar irritação, indignação e revolta (contra os sequestradores, principalmente o Papa, figura cínica, implacável, e com momentos de piedade só aparente).

A falta de justiça, ainda na virada política produzida no Estado em 1870, e as atitudes do próprio Edgardo quando adulto, intensificam o caráter sombrio do relato. Provavelmente na procura de ser fiel aos acontecimentos históricos, Bellocchio cria um filme escuro até nas cores – prevalecendo as cenas e sequências de tal condição, com muito boa fotografia (Francesco Di Giacomo) e excelente ambientação de época (dos anos 1852 até 1878).  Há música adequada de Fabio Massimo Capogrosso.

Corretas atuações, em especial de Paolo Pieroboni (como o Papa), Fabrizio Gifuni (o implacável inquisidor Pier Gaetano Feletti), Aurora Camatti (a doméstica, de conduta problemática e pouco cristã) e Enea Sala (o menino, em sua estreia cinematográfica). Depois, um bom elenco acompanha. Porém, o que vai prevalecer ao assistir e avaliar é a já citada trama da realização.

Em suma: “O Sequestro do Papa” é denso, problemático, sofrido, e faz pensar e sentir sobre as contradições, lutas, triunfos e derrotas dos humanos e suas instituições.

Observação: O título no Brasil – “O Sequestro do Papa” – tende a levar a engano, pois pode parecer que o pontífice foi sequestrado. Mais preciso seria “O Papa Sequestrador”.

por Tomás Allen – especial para A Toupeira

*Título assistido em Cabine de Imprensa Virtual promovida pela Pandora Filmes.

Filed in: Cinema

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