Filme incomum. (Ao fazer esta afirmação podemos perguntar se todo ou quase todo filme comercial não é incomum. Ainda assim, aqui essa característica fica mais acentuada).
Definimos desta maneira a “Triângulo da Tristeza” (Triangle of Sadness) porque, embora caminhe por vários gêneros cinematográficos, prevalece o grotesco. E este, por si só, é pouco utilizado nos filmes e contém elementos especiais: uma mistura do risível e do ridículo com o trágico. Tais forças, aparentemente contraditórias, podem ser complementares e manter um equilíbrio instável.
As definições teóricas dizem que esta categoria estética depende da combinação de riso e horror ou sentimentos vizinhos como a inquietação e o nojo. Também podem aparecer a depressão e o patético, isto é, causar dó, piedade ou tristeza. Até desdém por entes ridículos ou exagerados. Pode haver uma animalização dos personagens, acrescentando-se uma máscara social.
E, acontece também, que neste gênero (ou subgênero) se procura um aprofundamento psicológico. “A pocilga” (1969), de P.P.Pasolini, “Esperando la carroza” (1985), de Alejandro Doria, “Delicatessen” (1991), de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet são alguns exemplos disso.
Tendo em consideração tais elementos, “Triângulo da Tristeza” encaixa perfeitamente neles. Porém, leituras diferentes ou – melhor dito – paralelas podem ser feitas. Ruben Östlund, diretor-roteirista, tem antecedentes marcantes: “The Square” (do ano 2017, ganhador da Palma de Ouro em Cannes) já traz uma visão incisiva sobre a elite cultural vinculada à arte, com uma cena perturbadora muito bem realizada.
Agora, de novo, se ocupa de desmontar um setor social muito elevado economicamente. Só que exagera na escatologia de uma longa sequência (15 minutos de duração) que busca chocar pelo desagrado, mas resulta desnecessária sua extensão temporal. Um item mencionável é a música (de Mikkel Maltha), corretamente aplicada, com algumas partituras bem dinâmicas e até quase estrondosas.
Para deixar em “offside” (fora de lugar) aos muito ricos deste mundo, e outros objetivos não menos interessantes (como as oscilações e mudanças na relação de um casal bastante famoso etc.), o longa está dividido em três partes:
Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean, jovem atriz falecida recentemente), O Iate e A Ilha. Em cada uma delas vai-se construindo uma teia de relações, sentimentos, raciocínio e absurdos. Na primeira parte, o vínculo entre o homem e a mulher é marcado por diálogos que evidenciam desconfiança, concorrência, luta pelo domínio, manipulação etc. Embora de uma complexidade neurótica, há passagens que podem resultar cômicas.
Na segunda parte, Östlund nos instala dentro de um iate luxuoso, onde passeiam arquimilionários, que não são aristocratas pois fizeram suas fortunas recentemente e de forma estranha. A boa vida se faz presente, porém também há uma sucessão de condutas anômalas, com arbitrariedades, teimosias e implícito desprezo pelos outros.
Os perfis psicológicos estão muito bem desenhados nesta parte, assim como em todo o relato. Por exemplo, há muito humor com relação ao capitão do navio (Woody Harrelson), que é alcoólatra, bastante excêntrico, e ideologicamente… marxista! Isso já se percebe quando é apresentado fechado em sua cabine, escutando A Internacional, o hino marxista por excelência. E depois, quando parado em forma totalmente inclinada (para sua … direita), não reta como é habitual, deve lidar com uma mulher visivelmente alterada que têm percepções distorcidas e pretensões descabidas.
Não faltam outras passageiras similares, como aquela que pressiona uma das elegantes jovens da tripulação (a sueca Alicia Eriksson, perfeita nessa cena) para que faça algo constrangedor, insólito, e até inadequado. Ou uma terceira que mexe irresponsavelmente com um produto destrutor que o marido tem vendido até criar sua fortuna. Ou aquele ricaço conservador (o croata Zlatko Buric; significativamente também, neste caso, com postura física inclinada para sua… esquerda) que discute com o capitão sobre o que está certo – política e ideologicamente – capitalismo ou socialismo.
Essa discussão dá lugar a uma espécie de batalha verbal, com alternadas citações de autores célebres de ambas as partes e que resulta em um verdadeiro embate intelectual. (Embora ao menos uma está mal atribuída a Marx, que a tinha como favorita, mas era originalmente do pensador clássico Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”).
Também há observações sobre a conduta humana, por exemplo, quando se diz que as pessoas olham para o espelho e veem o monstro que são elas mesmas, mas criam mentalmente uma autopercepção totalmente diferente, e recebem outra impressão. Ou, outros comentários políticos e ideológicos sobre as intervenções internacionais dos Estados Unidos.
Nesse navio (que era do armador e magnata grego-argentino Aristóteles Onassis e foi alugado para esta produção) vão ficando evidentes os absurdos que traz o acúmulo de dinheiro e a submissão a que pode conduzir tanto aos possuidores quanto àqueles que o necessitam para viver.
Na terceira parte (A Ilha) a situação se modifica drasticamente quando se produz o naufrágio da embarcação e alguns sobreviventes vão parar em uma pequena e isolada ilha. Os vínculos se modificam e se inverte a antiga pirâmide social (feita de classes antagônicas em luta?). Os indivíduos se aproximam de condutas infantis ou próprias de animais (que matam de modo selvagem outros, de outras espécies). Os instintos básicos afloram. Aos poucos o relato se encaminha a sua conclusão, magnificamente desenhada por Östlund, amarrando diversos fios que tinha apresentado nas partes anteriores.
Os sentimentos e paixões mais fortes, em especial o sexual, aparecem para dar o toque final. Há, além de uma concepção elogiável de roteiro e direção e uma edição muito bem calculada (Mikel Cee Karlsson e o próprio Östlund), uma atuação elogiável da filipina Dolly De León. A última sequência pode acompanhar ao espectador atento ao longo de um tempo posterior à exibição, necessário para puxar mentalmente os fios que conduziram até essa derradeira situação, com seu percurso já iniciado na primeira parte da produção, e o possível ou provável desfecho.
Não é uma obra simples, nem fácil de assistir e entender. Por exemplo, resulta interessante saber o significado de “Triângulo da tristeza” no âmbito da fotografia e da moda e como aplicá-lo aqui. Aliás, para quem procura simetrias – decisivas para analisar a estrutura de um filme – talvez tenha uma entre esse triângulo inicial e o final.
Como estamos dizendo, podemos ter um olhar superficial sobre a trama e outro, mais aprofundado, em várias linhas interpretativas que subjazem neste grotesco agudo, incisivo e até desnorteante. Não em vão, a realização foi premiada no Festival Internacional do Cinema de Cannes e está indicada ao Oscar, nas categorias de melhor filme, roteiro original e direção.
por Tomás Allen – especial para A Toupeira
*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Diamond Films.